Não te queixes dela. Não fales mal dela.
Aproveita acordar os teus filhos, a tua mulher, o teu marido, sempre à mesma hora. Aproveita lavar os dentes à mesma hora, apanhar o autocarro, ou o metro, ou a viagem de carro, à mesma hora, sempre à mesma hora. Aproveita até o trânsito caótico, o corrupio de pessoas.
Aproveita o beijo de despedida antes do trabalho, o abraço de despedida antes da escola, o caminho até à porta, a mão na mão, as histórias de cada dia, os desafios de cada dia, até as dores de cada dia. Não vás na banha da cobra que só é feliz quem está numa ilha tórrida no meio do oceano, ou quem vai aos melhores restaurantes, ou quem tem os melhores carros ou as melhores casas.
Não esperes pelo extraordinário. Não penses que é lá, no extraordinário, que está o que interessa. Não é na viagem de sonho que está o que te faz feliz, não é no carro de sonho que está o que te faz feliz. É no banal, na normalidade de uma ida ao supermercado com a tua mãe, com a tua avó, com quem tu amas, na maneira como os teus ombros recebem quem gosta de ti, nas palavras trocadas antes de dormir, numa simples troca de olhar antes de adormecer, num "amo-te" sussurrado ao ouvido, na forma como consegues sentir cada momento previsível do que te acontece.
É dela, estou em condições de te garantir, que mais vais sentir falta quando chegar uma doença, ou uma perda, ou uma impossibilidade.
Vais querer queixar-te dos teus filhos a saltar sem parar, do ruído deles a correr pela casa. E não vais poder.
Vais querer queixar-te do trabalho sempre igual, das pessoas do trabalho sempre iguais, dos dias sempre iguais. E não vais poder.
Um dia vais querer a rotina que tens agora e não vais poder tê-la. É aí que vais perceber que devias, enquanto a tinhas, ter explorado tudo o que ela te dava, a estabilidade que ela te dava, a âncora que ela te dava.
Nunca deixes de sonhar, claro. Nunca deixes de querer mais, de ser mais, de sentir mais, de explorar mais. Não te acomodes. Não te resignes.
É ela o extraordinário.
Pedro Chagas Freitas
