Ouvi este texto ontem, lido por Paula Lobo Antunes e emocionei-me...

porque na verdade, a SAÚDE, é o bem mais precioso da nossa vida 

e por vezes só nos apercebemos disso quando ela nos falta.



O último abraço que me dás

Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, 

jamais vi uma lágrima. Somente feições sérias, de uma seriedade 

que não topei em mais parte alguma, rostos com o mundo inteiro

 em cada prega, traços esculpidos a fogo na pele

16:42 Quinta feira, 12 de Dezembro de 2013 |
Para Luís Costa
O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do
Hospital de Santa Maria,
onde a elegância dos doentes os transforma em reis. Numa das últimas vezes que lá fui
 encontrei um homem
que conheço há muitos anos. Estava tão magro que demorei a perceber quem era.
Disse-me
- Abrace-me porque é o último abraço que me dá
durante o abraço
- Tenho muita pena de não acabar a tese de doutoramento
e, ao afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com tanta dor entre parêntesis, nunca imaginei
que fosse
tão bonito.
Com o meu corpo contra o dele veio-me à cabeça, instantâneo, o fragmento de um poema do
meu amigo
Alexandre O'Neill, que diz que apenas entre os homens, e por eles, vale a pena viver. E descobri-me
 cheio
de respeito e amor. Um rapaz, de cerca de vinte anos, que fazia quimioterapia ao pé de mim, numa
determinação tranquila:
- Estou aqui para lutar
e, por estranho que pareça, havia alegria em cada gesto seu. Achei nele o medo também, mais do
 que o medo,
o terror e, ao mesmo tempo que o terror, a coragem e a esperança.
A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros, comoveu-me.
Tropecei no desespero, no malestar físico, na presença da morte, na surpresa da dor,
na horrível solidão da proximidade do fim, que se
me afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para isto, fomos feitos para a vida.
O cabelo
cresce-me de novo, acho-me, fisicamente, como antes, estou a acabar o livro e o meu pensamento
desvia-se constantemente para a voz de um homem no meu ouvido
- Acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento
porque não aceito a aceitação, porque não aceito a crueldade, porque não aceito
que destruam companheiros.
A rapariga com a peruca no braço da cadeira. O senhor que não olhava para ninguém,
olhava para o vazio.
Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma lágrima.
Somente feições sérias,
de uma seriedade que não topei em mais parte alguma, rostos com o mundo inteiro em cada
 prega, traços esculpidos a fogo na pele. Vi morrer gente quando era médico, vi morrer
 gente na guerra, e continuo sem compreender. Isso eu sei que não compreenderei.
Que me espanta. Que me faz zangar. Abrace-me porque
é o último abraço que me dá: é uma frase que se entenda, esta? Morreu há muito pouco tempo.
 Foda-se.
Perdoem esta palavra mas é a única que me sai. Foda-se. Quando eu era pequeno
 ninguém morria.
Porque carga de água se morre agora, pelo simples facto de eu ter crescido?
 Morra um homem fique
fama, declaravam os contrabandistas da raia. Se tivermos sorte alguém se lembrará
 de nós com saudade.
De mim ficarão os livros. E depois? Tolstoi, no seu diário: sou o melhor; e depois?
 E depois nada porque
 a fama é nada.
O que é muito mais do que nada são estas criaturas feridas, a recordação
 profundamente lancinante de
uma peruca de mulher num braço de cadeira. Se eu estivesse ali sozinho,
 sem ninguém a ver-me,
acariciava uma daquelas madeixas horas sem fim. No termo das sessões
de quimioterapia as
pessoas vão-se embora. Ao desaparecerem na porta penso: o que farão agora?
E apetece-me ir
com eles, impedir que lhes façam mal:
- Abrace-me porque talvez não seja o último abraço que me dá.
Ao M. foi. E pode afigurar-se estranho mas ainda o trago na pele. Durante quanto tempo
vou ficar com ele
tatuado?
O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia
 do Hospital de
Santa Maria onde a dignidade dos escravos da doença os transforma em gigantes,
 onde só existem,
 nas palavras do Luís, Heróis.
Onde só existem Heróis. Não estou doente agora. Não sei se voltarei a estar.
Se voltar a estar,
 embora não chegue aos calcanhares de herói algum, espero comportar-me
 como um homem.
Oxalá o consiga. Como escreveu Torga o destino destina mas o resto é comigo.
E é. Muito boa tarde
 a todos e as melhoras: é assim que se despedem no Serviço de Oncologia.
Muito boa tarde a todos
 e até já, mesmo que seja o último abraço que damos.