sábado, 29 de setembro de 2018

O coração

Apanha os estilhaços do meu coração
que andam espalhadas pelo chão,
aqueles que tu partiste em mil bocados
com mentiras e sentimentos trocados

São estilhaços a rasgarem-me por dentro
esquecer tudo eu quero, eu bem tento...
e, não sei sequer se os consegues apanhar
nem tão pouco o meu coração consertar

Apanho os estilhaços do teu coraçao
que andam espalhados pelo chão,
colo-os pedacinho por pedacinho
porque te quero no meu caminho

Apanho os estilhaços do teu coração
que andam espalhados pelo chão
e mesmo com os pedaços remendados
junto-os para que fiquem bem colados

Estilhaços que, apesar de remendados
estilhaços que, apesar de  colados
ainda mostram as suas fissuras
nas cavidades mais obscuras 

Apanho os estilhaços do teu coração
e agora que já estão  na minha mão
devolvo-te todos num só, por inteiro,
toma no coração meu amor verdadeiro




Fevereiro
2016






                                                                                          







quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Entre os teus lábios 
é que a loucura acode, 
desce à garganta, 
invade a água.

No teu peito 
é que o pólen do fogo 
se junta à nascente, 
alastra na sombra.

Nos teus flancos 
é que a fonte começa 
a ser rio de abelhas, 
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos 
é que a areia queima, 
o sol é secreto, 
cego o silêncio.

Deita-te comigo. 
Ilumina meus vidros. 
Entre lábios e lábios 
toda a música é minha.



(Eugénio de Andrade)


sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Uma bela e instigante carta de Clarice Lispector para a sua irmã Tania Kaufmann

Berna, 6 janeiro 1948
Minha florzinha,
Recebi sua carta desse estranho Bucsky, datada de 30 de Dezembro. Como fiquei contente, minha irmãzinha, com certas frases suas. Não diga porém: descobri que ainda há muita coisa viva em mim. Mas não, minha querida! Você está toda viva! Somente você tem levado uma vida irracional, uma vida que não parece com você. Tania, não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.
Nem sei como lhe explicar, querida irmã, minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perder o respeito de si mesma e o respeito de suas próprias necessidades – depois disso fica-se um pouco um trapo. Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar, e contar experiências minhas e de outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, ou falta de caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos levar de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito.
Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? assim fiquei eu…, em que pese a dura comparação… Para me adatar (sic) ao que era inadatável (sic), para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus aguilhões – cortei em mim a força que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que nos leve de volta, só a ideia de ver você e de retomar um pouco minha vida – que não era maravilhosa mas era uma vida – eu me transforme inteiramente. Mariazinha, mulher do Milton, um dia desses encheu-se de coragem, como ela disse, e me perguntou: você era muito diferente, não era? Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com uma lassidão de mulher de cinquenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria nem necessidade de lhe dizer, então… Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado.
Minha irmãzinha, ouça meu conselho, ouça meu pedido: respeite a você mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você – respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você – pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita – não copie uma pessoa ideal, copie você mesma – é esse o único meio de viver. Eu tenho tanto medo de que aconteça com você o que aconteceu comigo, pois nós somos parecidas. Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia – será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma moral amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse a minha vida sem eu saber – pois somente saber de sua presença me transformaria e me daria vida e alegria. Isso seria uma lição para você. Ver o que pode suceder quando se pactuou com a comodidade de alma. Tenha coragem de se transformar, minha querida, de fazer o que você deseja – seja sair nos week-end, seja o que for. Me escreva sem a preocupação de falar coisas neutras – porque como poderíamos fazer bem uma a outra sem esse mínimo de sinceridade?
Que o ano novo lhe traga todas as felicidades, minha querida. Receba um abraço de muita saudade, de enorme saudade de sua irmã
Clarice [Lispector]
– Clarice Lispectot ‘Carta’, em “Correspondências”, de Clarice Lispector.[organização Teresa Montero]. 1ª ed., – Rio de Janeiro: Rocco, 2015.


quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Viagem em Pensamento




Esta é a viagem 
que mais gosto de fazer
nem preciso de passagem 
e está sempre a acontecer 

Embarco no passado
e vou onde eu quiser...
sem pressas e sem bagagem
aí visito a minha infância
num calmo e doce reviver
e nem importa a distância

Instalo-me no hotel das Histórias
que fica na Rua das Memórias
é um hotel com muitas estrelas
lindo, mas sem portas nem janelas

Perco me por aqui e por ali
e,  quando preciso voltar
trago em mim tudo o que vivi
para uma história contar 

Agora tenho que ir
para mais uma viagem
- alguém quer vir?
Já sabem
Não é preciso bagagem 



 Jan 2017





quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Natália Correia 13 Set 1923 // 16 Mar 1993

De Amor nada Mais Resta que um Outubro

De amor nada mais resta que um Outubro 
e quanto mais amada mais desisto: 
quanto mais tu me despes mais me cubro 
e quanto mais me escondo mais me avisto. 

E sei que mais te enleio e te deslumbro 
porque se mais me ofusco mais existo. 
Por dentro me ilumino, sol oculto, 
por fora te ajoelho, corpo místico. 

Não me acordes. Estou morta na quermesse 
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie 
nem teus zelos amantes a demovem. 

Mas quanto mais em nuvem me desfaço 
mais de terra e de fogo é o abraço 
com que na carne queres reter-me jovem. 

Natália Correia, in “Poesia Completa” 


segunda-feira, 3 de setembro de 2018


A vida é uma escola de onde tiramos lições
Uns são melhores alunos que outros,
É preciso entender os porquês, as razões
Dos acontecimentos e dos desencontros.

Amanhã os erros de hoje serão experiências,
Com tudo aprendemos e podemos melhorar,
Todos os momentos do passado são vivências
Que podemos corrigir e outros erros superar

2012