A Confissão
Sara era uma criança alegre
e com a cabeça sempre cheia de fantasias. Tinha um companheiro o Alex, um cão
dócil e brincalhão, sempre pronto a acompanhá-la nas suas loucuras. Eram
inseparáveis, quer nos momentos mais agitados, quer nos momentos calmos. É que Sara
gostava de se sentar ao lado do Alex, e
ao mesmo tempo que lhe fazia festas, apreciava a paisagem e deixava os
pensamentos fluírem.
Às vezes, aliás a maior
parte das vezes, uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos mais atentos e
limpos para o espectáculo do mundo.
A Sara vivia com os pais e a
avó numa robusta casa de quinta, aninhada a um canto do prado, sendo a casa
mais próxima a de uma mulher de meia-idade que vivia sozinha.
A casa era uma espécie de miradouro para uma longa paisagem de
montanha, abrindo verdes perante a passarada que voava irrequieta por ali.
A vista era deslumbrante e por isso Sara passava horas sentada ao
lado do seu fiel amigo, apreciando aquele quadro vivo e colorido, que lhe
despertava a imaginação, dando-lhe asas, e só Alex a compreendia. Respeitava o
seu silêncio, parecendo também contemplar a imensidão daqueles campos.
A vizinha de Sara era uma mulher amarga, solitária. Apenas trocava
algumas palavras com a avó da Sara quando se cruzavam, palavras de ocasião ou
cortesia, nada mais. Todos estranhavam a solidão daquela mulher, nem sequer lhe
viam um animal de estimação como companhia. Até o Alex quando lhe rondava a
casa se sentia agitado perante a mulher, pressentia que não era bem vindo ali,
ía e vinha sem demora, mal a via aparecer à porta fugia. Aquela figura austera,
de cara fechada para o mundo, assustava qualquer um. Mas o animal sentia
curiosidade e voltava, aproximava-se devagar e sempre sem demora. Até que um
dia foi ameaçado e ficou enraivecido. O diabo da mulher parecia que deitava
faíscas pela boca e pelos olhos e o pau que trazia na mão revelava as suas
intenções. O cão assustado fugia mais uma vez, mas prometia voltar …
Naquela manhã, Sara acordou
e estranhou a ausência do Alex, “já foi dar o passeio matinal e não esperou por
mim, mas já te apanho” pensou ela, ao mesmo tempo que decidiu despachar-se para
sair pelos campos. Andou por lá toda a manhã e nem sinais do Alex, “já deve
estar à minha espera à porta de casa” pensou e logo desatou a correr para casa.
Mas Alex ainda não tinha chegado. Nesse dia não apareceu e Sara já começava a
desesperar porque tal nunca acontecera antes.
E os dias foram passando e
nem sinais do cão. Sara chorava, os pais não sabiam que lhe fazer, a avó
chorava com ela, gostava muito do Alex, mas mais preocupada estava com a neta por
a ver tão triste e abalada.
Decidiu ir a casa da vizinha
perguntar se tinha visto o cão rondar por ali. Esta abriu-lhe a porta e
manteve-se encostada enquanto escutava a velhota falar por entre lágrimas. A
sua postura era a de uma mulher altiva, contra o mundo, alheia aos sentimentos
humanos, sempre na defensiva. “Não vi cão nenhum por aqui, aliás nunca vi”
disse entre dentes mais do que uma vez, ao mesmo tempo que fitava atentamente o
rosto lívido da avó de Sara.
A avó de Sara teve a sensação de que aquela frase lhe soava a mentira,
dita com tanta hesitação como se tivesse acabado de ser engendrada, estando a ser
proferida tantas vezes que cada vez soava mais a falso. Foi embora cabisbaixa,
como se levasse o mundo às costas, entrando em casa desiludida e amargurada.
Os dias foram passando sem
novidades do Alex. Sara passava os dias a procurá-lo, apoderando-se dela uma
tristeza sem fim. Perdeu o apetite e acabou por adoecer. Até que um dia desmaiou
e tiveram que chamar uma ambulância.
A vizinha apercebeu-se do
que se passava. Começou a andar nervosa, dormia mal, o pensamento que passara
parte do dia a corroer-lhe o humor, até de noite a sobressaltava, sentia-se
perdida. Virava-se de um lado para o outro, enquanto a sua mente não parava de
esbarrar no problema. Tinha-se tornado num monstro capaz de tudo para se vingar
da sua má sorte.
No dia seguinte ao cruzar-se
com a avó de Sara, perguntou o que tinha acontecido e soube que a menina estava
doente, com uma fraqueza muito grande, provocada pela falta de apetite e por
tanta tristeza. Não conseguia reagir por não saber do Alex. A avó também
parecia ter envelhecido alguns anos. A mulher ficou sem palavras. Via pela
primeira vez na vida, o caminho pelo qual seguia a sua loucura destrutiva. Os
remorsos começaram a ameaçá-la sem descanso.
Certo dia acordou e pensou
“quando tudo o mais falha, é hora de dizer a verdade, é a única maneira de ter
descanso”, o pior mesmo era arranjar coragem para o fazer… como seria possível
confessar o que tinha feito, mas tinha que remediar o mal gerado à sua volta, como
tinha sido possível ter-se transformado numa pessoa tão má, ela que nem sempre
fora assim. Ninguém tinha culpa dos seus desgostos, que a atiraram para aquela
solidão.
Ganhou coragem, começando
logo ali a castigar-se pela maldade que tinha cometido e saiu para ir a casa de
Sara. Foi a avó que lhe abriu a porta. Ficou a olhar para ela como se visse um
fantasma e ficou estática sem saber o que aquele olhar queria dizer. Algo entre
o desespero e o medo, mas acabou por balbuciar as primeiras palavras “Tenho uma
confissão a fazer“ a avó de Sara nem conseguiu responder. E ela nem conseguiu
falar. As lágrimas deslizavam pelo rosto, só o silêncio e o vazio se completavam.
A avó de Sara mandou-a entrar. A mulher encostou-se à janela, branca como a
parede, e a velhota acenou para que se sentasse. A sua intuição dizia-lhe que
algo iria ser revelado e que era melhor acalmá-la para que ela não voltasse
atrás.
Os pais de Sara estavam no
hospital com ela, por isso só estavam ali as duas naquela casa que repousava
num silêncio sepulcral.
A mulher começou a falar e
ainda num modo claro e conciso conseguiu dizer “tenho que fazer uma confissão”…
depois a voz embargou-se e o resto das palavras já não soavam de um modo claro,
é que, seguir em frente não era assim tão fácil. A avó de Sara apercebeu-se e
tentou ser amável para lhe facilitar a confissão. E foi então que a mulher,
entre lágrimas, confessou ter envenenado o cão. Estava arrependida e não sabia
como remediar o que tinha feito e sobretudo como ter o perdão de Sara. A
velhota estava boquiaberta, e mais revoltada ainda por sentir pena da mulher
que estava lavada em lágrimas.
Foram interrompidas pelo
telefone, era a mãe de Sara a dizer que estavam a caminho de casa. A mulher
ficou assustada e quis ir embora, mas a velhota aconselhou a que ficasse e que
fizesse a mesma confissão a toda a família. Ela não teve força para a
contrariar e ali ficou, trémula de medo, mas ao mesmo tempo a pensar que o que
teria de ser feito, já estava a meio, teria que ter mais um pouco de coragem,
depois logo se veria.
Quando Sara entrou em casa,
ainda muito debilitada, e deu de caras com a mulher, agarrou-se à avó que lhe
pediu que ficasse e que ouvisse a mulher. Esta voltou a repetir “tenho uma
confissão a fazer” e entre lágrimas contou o que tinha feito. Sara chorava
convulsivamente e só pediu para se ir deitar. A mulher ficou prostrada sem
saber se a menina alguma vez lhe iria perdoar. Mas pelo menos já tinha
confessado o mal que fez e isso já era meio caminho para encontrar um pouco de
paz. No entanto precisava de compensar a menina pelo desgosto que lhe causara e
isso era importante para ela ultrapassar tudo isto e foi para casa a pensar como
poderia fazê-lo.
Decorreram alguns dias, Sara
ía melhorando, mas todos esperavam por um sorriso e isso ainda não acontecera.
A mulher visitava-a de vez em quando, levava-lhe livros de histórias, mas Sara
nem lhes tocava. Queria perdoar à vizinha, mas não conseguia. Sabia que o facto
de ela ter confessado, talvez merecesse perdão, mas era mais forte que ela.
Porém, naquele dia de
Primavera, em que o Sol já brilhava na encosta, e os passarinhos chilreavam, a
vizinha bateu à porta e pediu para falar com Sara. Trazia um ar de esperança no
olhar e ficou a olhar para Sara com as mãos nos bolsos. Depois perguntou a
Sara, “qual é a mão que tu queres escolher? A que está no bolso direito ou no
bolso esquerdo?” A menina não sabia bem
o que pensar, mas deixou-se entrar no jogo e escolheu a mão direita. Qual não
foi o seu espanto quando viu a mulher tirar do bolso um cãozinho tão pequenino,
tão querido, ao qual a Sara não conseguiu resistir. A mulher disse-lhe “É teu”.
Sara finalmente esboçou um
sorriso e conseguiu abraçar a mulher. O rosto desta iluminou-se de esperança,
esperança de ter o perdão de Sara e de poder conquistar a sua amizade. Uma
esperança de poder voltar a ser a mulher de outrora, talvez que a paz devolvida
por aquela confissão possa significar um recomeço na sua vida.
Maria Dias
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