Para o Boletim da Arpic de Outubro envio:
O
CANTINHO DA POESIA, PENSAMENTOS, CONTOS E
OUTROS…..
Outubro, nova estação a
começar, o Outono mostra a natureza a envelhecer, para mais tarde renascer. Mas
no homem, as estações da vida têm um fim. Porém, uma vida pode renascer quando
se abre o coração para o mundo…
A
Confissão
Sara era
uma criança alegre e com a cabeça sempre cheia de fantasias. Tinha um
companheiro o Alex, um cão dócil e brincalhão, sempre pronto a acompanhá-la nas
suas loucuras. Eram inseparáveis, quer nos momentos mais agitados, quer nos
momentos calmos. É que Sara gostava de se sentar ao lado do Alex, e ao mesmo
tempo que lhe fazia festas, apreciava a paisagem e deixava os pensamentos
fluírem.
Às vezes,
aliás a maior parte das vezes, uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos
mais atentos e limpos para o espectáculo do mundo.
A Sara
vivia com os pais e a avó numa robusta casa de quinta, aninhada a um canto do
prado, sendo a casa mais próxima a de uma mulher de meia-idade que vivia
sozinha.
A casa era uma espécie de miradouro para uma
longa paisagem de montanha, abrindo verdes perante a passarada que voava
irrequieta por ali.
A vista era deslumbrante e por isso Sara
passava horas sentada ao lado do seu fiel amigo, apreciando aquele quadro vivo
e colorido, que lhe despertava a imaginação, dando-lhe asas, e só Alex a
compreendia. Respeitava o seu silêncio, parecendo também contemplar a imensidão
daqueles campos.
A vizinha de Sara era uma mulher amarga,
solitária. Apenas trocava algumas palavras com a avó da Sara quando se cruzavam,
palavras de ocasião ou cortesia, nada mais. Todos estranhavam a solidão daquela
mulher, nem sequer lhe viam um animal de estimação como companhia. Até o Alex
quando lhe rondava a casa se sentia agitado perante a mulher, pressentia que
não era bem vindo ali, ía e vinha sem demora, mal a via aparecer à porta fugia.
Aquela figura austera, de cara fechada para o mundo, assustava qualquer um. Mas
o animal sentia curiosidade e voltava, aproximava-se devagar e sempre sem
demora. Até que um dia foi ameaçado e ficou enraivecido. O diabo da mulher
parecia que deitava faíscas pela boca e pelos olhos e o pau que trazia na mão
revelava as suas intenções. O cão assustado fugia mais uma vez, mas prometia
voltar …
Naquela
manhã, Sara acordou e estranhou a ausência do Alex, “já foi dar o passeio
matinal e não esperou por mim, mas já te apanho” pensou ela, ao mesmo tempo que
decidiu despachar-se para sair pelos campos. Andou por lá toda a manhã e nem
sinais do Alex, “já deve estar à minha espera à porta de casa” pensou e logo
desatou a correr para casa. Mas Alex ainda não tinha chegado. Nesse dia não
apareceu e Sara já começava a desesperar porque tal nunca acontecera antes.
E os dias
foram passando e nem sinais do cão. Sara chorava, os pais não sabiam que lhe
fazer, a avó chorava com ela, gostava muito do Alex, mas mais preocupada estava
com a neta por a ver tão triste e abalada.
Decidiu
ir a casa da vizinha perguntar se tinha visto o cão rondar por ali. Esta
abriu-lhe a porta e manteve-se encostada enquanto escutava a velhota falar por
entre lágrimas. A sua postura era a de uma mulher altiva, contra o mundo,
alheia aos sentimentos humanos, sempre na defensiva. “Não vi cão nenhum por
aqui, aliás nunca vi” disse entre dentes mais do que uma vez, ao mesmo tempo
que fitava atentamente o rosto lívido da avó de Sara.
A avó de Sara teve a sensação de que aquela
frase lhe soava a mentira, dita com tanta hesitação como se tivesse acabado de
ser engendrada, estando a ser proferida tantas vezes que cada vez soava mais a
falso. Foi embora cabisbaixa, como se levasse o mundo às costas, entrando em
casa desiludida e amargurada.
Os dias
foram passando sem novidades do Alex. Sara passava os dias a procurá-lo,
apoderando-se dela uma tristeza sem fim. Perdeu o apetite e acabou por adoecer.
Até que um dia desmaiou e tiveram que chamar uma ambulância.
A vizinha
apercebeu-se do que se passava. Começou a andar nervosa, dormia mal, o
pensamento que passara parte do dia a corroer-lhe o humor, até de noite a
sobressaltava, sentia-se perdida. Virava-se de um lado para o outro, enquanto a
sua mente não parava de esbarrar no problema. Tinha-se tornado num monstro
capaz de tudo para se vingar da sua má sorte.
No dia
seguinte ao cruzar-se com a avó de Sara, perguntou o que tinha acontecido e
soube que a menina estava doente, com uma fraqueza muito grande, provocada pela
falta de apetite e por tanta tristeza. Não conseguia reagir por não saber do
Alex. A avó também parecia ter envelhecido alguns anos. A mulher ficou sem
palavras. Via pela primeira vez na vida, o caminho pelo qual seguia a sua
loucura destrutiva. Os remorsos começaram a ameaçá-la sem descanso.
Certo dia
acordou e pensou “quando tudo o mais falha, é hora de dizer a verdade, é a
única maneira de ter descanso”, o pior mesmo era arranjar coragem para o fazer…
como seria possível confessar o que tinha feito, mas tinha que remediar o mal
gerado à sua volta, como tinha sido possível ter-se transformado numa pessoa
tão má, ela que nem sempre fora assim. Ninguém tinha culpa dos seus desgostos,
que a atiraram para aquela solidão.
Ganhou
coragem, começando logo ali a castigar-se pela maldade que tinha cometido e
saiu para ir a casa de Sara. Foi a avó que lhe abriu a porta. Ficou a olhar
para ela como se visse um fantasma e ficou estática sem saber o que aquele
olhar queria dizer. Algo entre o desespero e o medo, mas acabou por balbuciar
as primeiras palavras “Tenho uma confissão a fazer“ a avó de Sara nem conseguiu
responder. E ela nem conseguiu falar. As lágrimas deslizavam pelo rosto, só o
silêncio e o vazio se completavam. A avó de Sara mandou-a entrar. A mulher
encostou-se à janela, branca como a parede, e a velhota acenou para que se
sentasse. A sua intuição dizia-lhe que algo iria ser revelado e que era melhor
acalmá-la para que ela não voltasse atrás.
Os pais
de Sara estavam no hospital com ela, por isso só estavam ali as duas naquela
casa que repousava num silêncio sepulcral.
A mulher
começou a falar e ainda num modo claro e conciso conseguiu dizer “tenho que
fazer uma confissão”… depois a voz embargou-se e o resto das palavras já não
soavam de um modo claro, é que, seguir em frente não era assim tão fácil. A avó
de Sara apercebeu-se e tentou ser amável para lhe facilitar a confissão. E foi
então que a mulher, entre lágrimas, confessou ter envenenado o cão. Estava
arrependida e não sabia como remediar o que tinha feito e sobretudo como ter o
perdão de Sara. A velhota estava boquiaberta, e mais revoltada ainda por sentir
pena da mulher que estava lavada em lágrimas.
Foram
interrompidas pelo telefone, era a mãe de Sara a dizer que estavam a caminho de
casa. A mulher ficou assustada e quis ir embora, mas a velhota aconselhou a que
ficasse e que fizesse a mesma confissão a toda a família. Ela não teve força
para a contrariar e ali ficou, trémula de medo, mas ao mesmo tempo a pensar que
o que teria de ser feito, já estava a meio, teria que ter mais um pouco de
coragem, depois logo se veria.
Quando
Sara entrou em casa, ainda muito debilitada, e deu de caras com a mulher,
agarrou-se à avó que lhe pediu que ficasse e que ouvisse a mulher. Esta voltou
a repetir “tenho uma confissão a fazer” e entre lágrimas contou o que tinha
feito. Sara chorava convulsivamente e só pediu para se ir deitar. A mulher
ficou prostrada sem saber se a menina alguma vez lhe iria perdoar. Mas pelo
menos já tinha confessado o mal que fez e isso já era meio caminho para
encontrar um pouco de paz. No entanto precisava de compensar a menina pelo
desgosto que lhe causara e isso era importante para ela ultrapassar tudo isto e
foi para casa a pensar como poderia fazê-lo.
Decorreram
alguns dias, Sara ía melhorando, mas todos esperavam por um sorriso e isso
ainda não acontecera. A mulher visitava-a de vez em quando, levava-lhe livros
de histórias, mas Sara nem lhes tocava. Queria perdoar à vizinha, mas não
conseguia. Sabia que o facto de ela ter confessado, talvez merecesse perdão,
mas era mais forte que ela.
Porém,
naquele dia de Primavera, em que o Sol já brilhava na encosta, e os passarinhos
chilreavam, a vizinha bateu à porta e pediu para falar com Sara. Trazia um ar
de esperança no olhar e ficou a olhar para Sara com as mãos nos bolsos. Depois
perguntou a Sara, “qual é a mão que tu queres escolher? A que está no bolso
direito ou no bolso esquerdo?” A menina
não sabia bem o que pensar, mas deixou-se entrar no jogo e escolheu a mão
direita. Qual não foi o seu espanto quando viu a mulher tirar do bolso um
cãozinho tão pequenino, tão querido, ao qual a Sara não conseguiu resistir. A
mulher disse-lhe “É teu”.
Sara
finalmente esboçou um sorriso e conseguiu abraçar a mulher. O rosto desta
iluminou-se de esperança, esperança de ter o perdão de Sara e de poder
conquistar a sua amizade. Uma esperança de poder voltar a ser a mulher de
outrora, talvez que a paz devolvida por aquela confissão possa significar um
recomeço na sua vida.
Maria Dias
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